27/11/2006

explicação da poesia

- Pai, o que são versos ?
- Versos, minha luz, são palavras voltadas ao sentir

- E, pai, o que são poemas ?
- Poemas, fresca face, são alguns versos com sentidos fundos

- Mas pai, e o que é a poesia ?
- Poesia, olhos limpos, é a forma dos poetas abraçarem as pessoas

- Pai, e pode abraçar-se um poeta ?
- Sim, pura fronte, buscando nos seus versos o sentido do poema;
dizendo, quando possas, o sentir da poesia

08/11/2006

adágio

I
No centro do Outono o
nevoeiro pesa no negro do
silêncio. A terra dorme o
sono das madres
aconchegando ao
manto do seu ventre o
fundo mudo da encosta

II
Buscando erguer-se nas
árvores presas ao húmido
da noite, o ar deitado
na terra restolha rente
ao chão. Respira aí
um pouco e sobe devagar os
troncos escuros, aspirando
já aos ramos altos
sobre si

III
Um homem nú estremece
no gume dos sentidos,
a música do mundo
ganhando a curva
das costelas. Sem
perguntas a fronte
inverte a luz do olhar e
mansamente espera
a madrugada

09/10/2006

a forma do teu nome

Importa muito a dimensão do sonho
à dimensão do homem, mas é
nos dentes cerrados na vontade
de o saber e é no braço dolorido
de o forçar a se manter e é no sangue
rubro da paixão de conquistá-lo,
que podes no futuro contar histórias
de como o sonho quase nunca se alcançava
e mesmo assim o ar que respiravas
bordava a fogo a forma do teu nome

13/09/2006

dos cavalos

Vêm na alva os cavalos luminosos
pedir-te adoração,pois que são deuses.
Olham-te nos olhos do passado sem
memória, amam-te no salto do agora
que é todo o seu futuro. Olham-te e
amam-te, os teus cavalos livres. Na
pedra de um altar virado aos astros
tu e os deuses falam do galope
das almas dos cavalos e dos homens

05/09/2006

outros olhos

Há outros olhos,
sabes que há outros
olhos e hás-de procurá-los
sempre na combustão dos
astros, ou nos botões
das rosas. até à última
chama ou á primeira
pétala

04/09/2006

aí estás

Aí estás
simples como as ervas, leve como
o pó que levam os teus passos
no caminho

Aí estás
os olhos outra vez sentados
no difícil miradouro das almas
procurando a luz de cada uma
e em cada luz a tua luz
entrelaçada

Aí estás
e os gestos e as palavras de amanhã
esperam contigo o arfar breve
do Outono na folhagem das árvores
de Setembro

19/07/2006

mais verão

Chove. Mas é mais verão
no cheiro quente da terra.
De joelhos na turfa, beijas
o vapor da volúpia. A saia
molhada da tarde diz
que estão prontas
as espáduas das searas

vida real

Camões de espada ao
peito, Bocage rufião e tu,
Eugénio, voando o que não
sonham as pessoas que te
pensam sonhador

outra noite

Como pode a noite ser,
no lugar onde te encontras,
outra coisa que não noite ?
E beijando a sua sombra
com candeias de luz forte,
como pode anoitecer ?

13/07/2006

outro português

Sardinha no pão, caneca de vinho,
batatas com pele, azeite e
vinagre,um dia de verão
e salada de alface

português

As cigarras não são fáceis de
explicar; explicar as oliveiras
impensável. Porque choras
quando Amália canta o fado
nem tu sabes muito bem

22/06/2006

saudades da tristeza

Agora tudo é triste no teu mundo
e não há mundo que te mude o sentimento;
nada vês além das lágrimas, nem o ombro
onde choras, nem as mãos beijando-te
os cabelos, nem os dedos pacientes
sorrindo nos teus olhos magoados.

Há-de ser noutro dia que a saudade
de estar triste vai brilhar na tua face

19/06/2006

à sombra dos cavalos

Chegam notícias tristes da cidade,
tristes como soem desejar-se.
Teus dedos estancam, perdem viço
os movimentos, mas falta o tempo
para entristecer: de volta à brincadeira
renascem gargalhadas na garganta e
deixas-te outra vez levar, os braços
largos, um grande peito aberto,
tu e as ervas, à sombra do cavalos
um filho no pescoço, outro no colo

coração alado

Abrir as asas na curva da montanha,
ver do ar a pouca dimensão do homem,
mas ver que o homem voa quando quer.
Olhar ao lado outros seres voando
em rotas paralelas, divergentes, ou
contrárias: sorrir um toque de asa
a um irmão chegado e dar o corpo
ao vento, fremir no voo, sentir
no peito o coração alado, o
prenúncio etéreo de um começo astral

02/06/2006

o lugar dos signos

Há um lugar escondido na cidade
onde alguns seres revelam os seus signos;
vêm na alva, procuram toda a gente,
entram no dia, dizem os seus fados,
hora por hora esperam-se na tarde,
insistem no crepúsculo em chamar,
e vão-se embora à noite,
anoitecidos

31/05/2006

a luz do olhar

Na condição de ter uma luz sua
e de salgar a fonte do voar
nem o sol lhe despe a maresia
nem o mar lhe rouba o brilho
do olhar

30/05/2006

o homem de papel

Acorda de manhã,
o homem de papel,
de papel branco,
em branco respirar

sonha em caminhar,
o homem de papel,
de papel branco,
vincado de sinais

mas como não tem cor,
o homem de papel,
de papel branco,
marca de branco o ar

18/05/2006

campo pequeno

Os golpes das espadas
farpeadas
nas espáduas do boi
inocente.
O aço crú cravado
na carne, a ferida
injusta, fresca,
rasgada, o sofrimento
vão.
O ardor da carne,
nas chagas todas
inocentes...
O sangue. O sangue
quente, o sangue
puro, o sagrado
sangue
imolado à multidão
sôfrega.
A arte, claro,
os artistas
da morte

10/05/2006

da vontade da luz

São de festa os seus gestos corpo
adentro e há cantigas que só soam
quando a dois. No despontar do Verão,
brincam palavras com palavras enleadas
na vontade da luz em se florir

03/05/2006

recomeço

Começar de novo não
é difícil, difícil é
recomeçar

02/05/2006

força

O peso do mundo nos ombros,
aceita-o agora, só por um momento.
Por um instante sente-te sozinho,
deixa que doa, lamenta
teres caído. E agora basta:
deixa o suspiro a meio, engole
o cuspo seco. Levanta-te e anda,
perdoa-te e volta ao caminho.
Vê o que vales: não é fraco quem
fraqueja mas quem
fica no chão.

19/04/2006

lembrança

Dos corpos só restara uma lembrança
diluída em brumas espectrais;
parecia de sede, talvez fosse de gestos
mas era tão amena que a julgaram irreal

17/04/2006

mais um beijo

Deixas o corpo amolecer um pouco,
cansado que já estava de lutar por ti.
Respiras o ar sem dúvidas: sabes
que o mereceste. Tranquilamente,
adoças as mãos nos olhos e no teu colo
aqueces um pouco o mundo conturbado.
Uma canção esquecida vem junto a ti,
a espaços, relembrar-te o rio da memória.
Não podes pedir mais. Agradeces só
por mais um pôr do sol, por mais um beijo
na brisa madura dos teus cabelos soltos.

12/04/2006

beijar o lume

Viver-te o corpo como quem beija o lume
roçar nele a boca, fremir e tomá-lo
ficar porque se quer e não se quer
mais nada

apesar de voltar

Iremos outra vez; iremos
mesmo rasgando os pés pelos penedos

Iremos outra vez; e outra
até provarmos todo o sal do mar

Iremos outra vez; e outra; e outra
até sabermos quais os seus segredos

Iremos outra vez; iremos sempre
até esgotar-se a chama do olhar

Iremos, iremos. Apesar de voltar

21/03/2006

vida simples

Vendo bem, é pequenina a vida do poeta:
Pouco mais que o respirar dos seus poemas,
um ou outro beijo pressentido
e a luz que, quando a diz, muda de tom

20/03/2006

o caminhante

No meio das searas hesitava,
nos passos que fariam seu caminho.
Cerrava a fronte às vezes. Tacteava,
sondava a terra perguntando o norte.
Mas cada movimento que fazia
levantava no ar uma canção
e um horizonte novo em cada passo,
marcava nas espigas os seus olhos

17/03/2006

o pai

Todos os filhos em redor da
minha casa, sem condições
tomam meu rosto em suas mãos
pois tanto amo aqueles
para quem tudo é fácil,
como aqueles para quem
o fácil é difícil.
A todos amo, todos guardo
junto a mim, mas ponho mais
a minha mão sobre os que podem
menos e o meu coração alegra-se
com as suas pequenas vitórias

o legado

Chegou o tempo de deixar na pedra
alguns sinais de ti, mas não te iludas
nem as marcas fundas das palavras
nem o sangue das mãos no sulco
do cinzel podem dizer como eras o galope
dos cavalos, como as aves te voavam
junto a si, como as mãos que tinhas
abraçavam tanto mundo

16/03/2006

as amoras

As cigarras cantavam no Agosto
em que colhias amoras cor de vinho.
Tinham nelas o sabor da tarde,
as sérias amoras delicadas,
e davam-se devagar à luz do verão
há algum tempo posto no teu peito

14/03/2006

amigos

Viam-se melhor quando as manhãs
cristalizavam a luz do sol de Maio;
Via-se brincar aí, no espaço do sentir,
a diáfana matéria dos seus seres.
Aí se davam mãos, se tocavam as almas,
aí se riam ao provar dos frutos
que cada um, em dádiva, oferecia.

Os olhos de arco íris como a chuva
quando se dá ao sol, estremecida

06/02/2006

o poeta

Ele dorme nas searas encostado
ao nobre peito dos cavalos puros, no
conchego lento do seu bafo adocicado.

Nos seus sonhos há paisagens onde
os homens não conseguem pertencer,mas
o que recorda está marcado em pedra
cinzelada e tem na face os sinais fundos
das casas da cidade onde cresceu.

É para lá que apontam os seus braços,
quando devolve ao mundo, sublimadas,
as palavras que o mundo lhe ensinou

24/01/2006

dos retratos

Retratos são mentiras e verdades, sugeridas
ao correr dos olhos de quem quer olhar:

A menina que posa, não pode ser mentira,
quando dança sem dançar longos bailados
no palco brilhante dos olhos do seu pai;
a mulher que se expõe só pode ser verdade,
quando deixa a tristeza esvoar-se de dentro
e pintar nas nuvens o peso do chumbo.

Mas o ser no retrato não diz a menina
que brincou às bonecas antes de posar,
e não diz a mulher que se banhou nua
na lua de Março, não diz como riu,
se lavou da tristeza nesse riso de estrelas
e como, depois disso, foi jantar

13/01/2006

o dever

Hoje é o dia de olhar a criança
e de ver o homem que não querias ver;
é preciso, por isso, que lhe pegues na mão,
e o leves ao mar como a ti te levaram.
Leva-o e mostra-lhe as pregas do ar, o
calor do estio na tarde das aves e o longe
mais longe que pode o olhar. Mostra-lhe
a luz de lá e o cheiro das algas e
a dança do céu quando dança nas ondas.
Mostra-lhe e diz-lhe como gostar. Depois,
ouve com ele a canção de boas vindas,
que o sal da brisa vai trazer consigo e
sussurrar nos cabelos confiados
do teu filho

10/01/2006

quadro

Esvai-se a tarde morna em doce sono
a baixa mar embala o ar de leve
enfoscam-se de sombra os tons de Outono
anunciando a noite para breve.

No céu, a lua cheia está serena
e espera, recolhida, atrás dum monte.
O sol transmuda-se em vermelho; acena
à lua um beijo e beija o horizonte.

Tudo em redor se templa e se contém:
a prostituta abraça o seu amor,
o vagabundo pára e lembra a mãe...

e na praia sozinha, uma garota
enquanto ainda resta alguma cor
contempla, quietinha, uma gaivota

05/01/2006

a casa da montanha

Construíste na montanha a tua casa,
escondida a meia encosta, apartada
da cidade dos homens e distante
de todas as tuas outras casas.

É lá teu refúgio, é lá que guardas
o que mais vale em ti, o que mais prezas:
Farrapos de arco-íris, uns quantos raios
de luz, alguns cheiros da terra, do feno e
dos cavalos. Muitas danças: danças de
animais e homens, sinfonias de corpos, de
nervos e de músculos. Vários sons do ar
e canções de cristal encostadas a
um punhado de palavras plenas de sentidos.

É para aí que vais quando precisas
de fugir do mundo para te encontrares
contigo.Ai te bastas tu e o teu espírito e
o velho bordão de oliveira brava.

Aí te bastas; mas manténs a porta aberta
e muitos presentes preparados. De vez em quando,
lanças os olhos longe no caminho, esperas ouvir
os improváveis passos doutros caminheiros