24/01/2006

dos retratos

Retratos são mentiras e verdades, sugeridas
ao correr dos olhos de quem quer olhar:

A menina que posa, não pode ser mentira,
quando dança sem dançar longos bailados
no palco brilhante dos olhos do seu pai;
a mulher que se expõe só pode ser verdade,
quando deixa a tristeza esvoar-se de dentro
e pintar nas nuvens o peso do chumbo.

Mas o ser no retrato não diz a menina
que brincou às bonecas antes de posar,
e não diz a mulher que se banhou nua
na lua de Março, não diz como riu,
se lavou da tristeza nesse riso de estrelas
e como, depois disso, foi jantar

13/01/2006

o dever

Hoje é o dia de olhar a criança
e de ver o homem que não querias ver;
é preciso, por isso, que lhe pegues na mão,
e o leves ao mar como a ti te levaram.
Leva-o e mostra-lhe as pregas do ar, o
calor do estio na tarde das aves e o longe
mais longe que pode o olhar. Mostra-lhe
a luz de lá e o cheiro das algas e
a dança do céu quando dança nas ondas.
Mostra-lhe e diz-lhe como gostar. Depois,
ouve com ele a canção de boas vindas,
que o sal da brisa vai trazer consigo e
sussurrar nos cabelos confiados
do teu filho

10/01/2006

quadro

Esvai-se a tarde morna em doce sono
a baixa mar embala o ar de leve
enfoscam-se de sombra os tons de Outono
anunciando a noite para breve.

No céu, a lua cheia está serena
e espera, recolhida, atrás dum monte.
O sol transmuda-se em vermelho; acena
à lua um beijo e beija o horizonte.

Tudo em redor se templa e se contém:
a prostituta abraça o seu amor,
o vagabundo pára e lembra a mãe...

e na praia sozinha, uma garota
enquanto ainda resta alguma cor
contempla, quietinha, uma gaivota

05/01/2006

a casa da montanha

Construíste na montanha a tua casa,
escondida a meia encosta, apartada
da cidade dos homens e distante
de todas as tuas outras casas.

É lá teu refúgio, é lá que guardas
o que mais vale em ti, o que mais prezas:
Farrapos de arco-íris, uns quantos raios
de luz, alguns cheiros da terra, do feno e
dos cavalos. Muitas danças: danças de
animais e homens, sinfonias de corpos, de
nervos e de músculos. Vários sons do ar
e canções de cristal encostadas a
um punhado de palavras plenas de sentidos.

É para aí que vais quando precisas
de fugir do mundo para te encontrares
contigo.Ai te bastas tu e o teu espírito e
o velho bordão de oliveira brava.

Aí te bastas; mas manténs a porta aberta
e muitos presentes preparados. De vez em quando,
lanças os olhos longe no caminho, esperas ouvir
os improváveis passos doutros caminheiros