29/12/2005

marinheiro

Leva o veleiro ao mar, leva o veleiro
Preso às tuas mãos sem rei
de quem possas, ainda,ser vassalo.
Leva o veleiro ao mar preso à vontade
de um marinheiro só, mas homem basto.
O destino nada te disse antes e pouco
agora te dirá: Tu marcas a viagem,dás o rumo,
apontas o lugar no horizonte.

Leva o veleiro ao mar. E vai com ele.
É lá que tens o sal, que vês o sol
e bebes água da que dá a chuva.
Podes levar contigo uma gaivota branca
E rente ao peito a cruz dos teus temores
- os dias no mar são longos,
faz falta alguma companhia -
mas faz-te agora ao mar, leva o veleiro
por sobre as grandes vagas, pela rota
que faz pequeno o barco e a ti grande.

Leva veleiro ao mar, ó marinheiro
Que o teu destino faz-se em navegar

28/12/2005

irmãos

Nasceu o poeta, que voem as aves
o voo mais belo, o voo mais suave;
o irmão aleijado tem choro de sol,
só lhe ouve o canto quem conhece a tarde,
quem sabe do mar é que lhe bebe as lágrimas

26/12/2005

mãe

PRÓLOGO
Sob os teus passos estou, densa, desperta.
Molhada das chuvas de Outono, como
depois de um banho longamente esperado.
I
Lavada, cheiro a ervas e a barro e
ao germe das sementes.
II
Grávida de toda a vida, sou
Mãe de todas as coisas. Mas
fremo já antecipando o abraço donde
germinarão as próximas gerações.
III
Na tarde madura, recebo ainda o
Sol na pele; não brilho, porque
todo o brilho é reflexo: recebo e
incorporo a luz, completamente.
IV
Nalguns lugares estão filhos meus
cantando, noutros canto eu por mim,
cantos de água, tons de vento, eternas
canções de ondas oceânicas.
V
Sob ti estou, molhada e funda. Tão
funda, que cabem em mim todas as
almas e o próprio mar se aninha
no meu colo.
EPÍLOGO
Sob ti estou, em mim caminhas. Afago
os teus passos com a pura adoração
da mãe que beija o filho após amamentar

19/07/2005

das sombras

A tua mente é jovem, sim, a tua mente é jovem
Ainda cavalga o sol, ainda freme
Com pouco mais que a feromónica
sugestão de um cheiro mar;
Mas pensas muito também só por pensar
e deixas-te ficar de noite, alerta
ao leve passo das sombras,
que até há pouco nem o teu nome sabiam,
e tão bem sabem agora como
te chamar

08/06/2005

outro corpo

Já sentes outro corpo que o de jovem
ardendo ainda, mas em fogo lento.
No ardor do corpo agora
sabes pausar o coração e
um beijo teu já não tem só um sentido,
tem todos os sentidos sentados no tocar.
Agora sabes rir e ris na boca
mas ris também em todo o outro corpo,
ris nos poros, nas espáduas, nas palavras
ris devagar, isso te deu o tempo
ou foste tu que lho roubaste, já não sei

ponto de chegada

Canoa nas ondas
virada à bolina
trigo manso, maduro
dobrado no vento.
Estás como sempre
onde podes estar
mas aqui é igual
ao que sempre quiseste
aqui finda um caminho:
Chegaste.
Por muito que teimes
em ti e no sol
por muito que teimes
no sol e no mundo
nem tu, nem o sol
e menos o mundo
podem ser algo mais
do que o frémito lento
o ser devagar,
a festa tranquila,
o cúmplice abraço
entre ti e o dia

pequenos pormenores

Uma das claras luminosidades
que te aclare a mão
ou se transforme em cor.
Precisas disso: um mar manso
de verão, uma fogueira de estrelas,
alguns sons casuais, quase de música.
Esses pequenos pormenores do ar
que te folgam dos caminhos tortos

17/04/2005

cansados da noite

Cansados da noite, os teus olhos ainda
estranham quase toda a luz do dia; por
pouco tempo, porém, agora mesmo,
um grande sol cor de rosa sobe num
céu claro de arco íris e
luz em nuvens amarelas embaladas
por um vento verde pálido. É tanta cor,
que as pupilas já não sabem como escurecer
e o corpo freme e brilha no compasso
de cada inspiração. É claro
que não podes levar contigo o dia todo, mas
tomas alguns fios no teu bolso e
lesto tornas à estrada, retemperado

14/04/2005

tanto que não querias

Tanto que não querias entardecer,
tanto que ficavas preso ao dia,
à luz, ao seu olhar;
Vais-te embora agora mesmo,
não era essa a tua casa e
não podias, não podias ficar;
mas os teus olhos vão brancos de sal
e as tuas mãos sozinhas
espasmam-se no ar, pedem ainda
um suspiro nos poros, um
respirar de pássaro nas
breves polpas dos dedos

04/04/2005

duas vezes o sol

Duas vezes o sol; uma
por o ser, outra
por aquela cor quase de sangue;
duas vezes olhá-lo, bebê-lo,
duas vezes

sucedâneo

Se temos que voar cegos
na escuridão imensa do sol nos olhos
seja então com asas de cigarra
e que o vento cheire a oliveira

segredos de ofício

Contra o que se pensa as palavras boas
não são muitas e as que há de tão
usadas ficam gastas e sem brilho.
Quem as quiser com as cintilações antigas
tem que esculpir as sílabas em línguas
do mais puro cristal, fundi-las em cores
claras muito límpidas, retemperá-las
em nascentes de água pura.
Trabalho delicado, esse, só sabido
por poucos dos mais hábeis artesãos

velhos amigos

Fatigadas pelo tempo, regressaram as águas
e houve muitos beijos e gritos infantis
quando as nossas saudades, seguradas
explodiram em luzes e cantares e danças

02/04/2005

alimentos

Das flores as pétalas mais frescas
são para comer - e só depois as nuvens:
Amor e poesia não são actos
simultâneos

húmido

E disseram as sombras, disseram e
estavam molhadas:
A quem dar estas águas, sequiosas de sol?

da verdade

A minha verdade é uma laranja verde
da cor dos teus olhos e da tua idade
tem a forma dos astros, cheira como as ervas
e sabe demais ao teu sabor amargo.

dos sonhos

Era tempo de estio, sonharam com aves
e foram aos montes procurar por asas.
Não é sabido se também voaram
ou se as águias os colheram nos ninhos
para alimento dos recém nascidos.
Porém, nunca mais voltaram.

cegueira

Atravessaste os escolhos
e cegaste; os teus olhos,
lá ficaram, encantados.

nocturno

O rio,
chapinha em ondas
penúmbricas
e mornas
A lua,
ilumina a fosco
contornos
indistintos
Há uma gaivota nocturna,
passando,
num voo lento
de sono
Algures,
uma guitarra antiga,
traz a saudade,
no vento
melancólico.

ego

Satélite na essência,
e ainda assim concêntrico:
Tenho sede.