26/02/2017

da fala




Ouve os sons da tua alma
deixa fluir a música das
palavras que tão bem te
conhecem e tanto
te definem. Sente
como pairam sob o sol e
sobre o mar, como se
enlaçam em afagos e
em festas as palavras
portuguesas. Digam
o que disserem,dizem
tudo de ti, essas
luzentes  palavras
conformadas ao teu
ser




03/02/2017

despedida



Imóveis no restolho, os 

teus cavalos choram. As 

suas lágrimas embebem-se

no pó de alguns sonhos

mal vencidos. Virados

contra o vento os teus

cavalos choram por ti, que

já não estás, mas não

sabes como ir. Ávidos de

ânimo os teus cavalos

choram-te no peito onde

escondem as orelhas e

a vergonha

de chorar


perfume



Cansado dos dias áridos
o Verão parte de noite sem dizer que
se foi.  Ficam por ele as contas de
orvalho nas coxas expectantes
da terra sequiosa. O Outono
chega no seu andar de gato
e sonda no ar o odor da fêmea
plena. Num breve arrepio, ela
se entrega sem remorso a
esse  amor mais frio

06/02/2015

garças



De repente uma brisa, um golpe de mar.
Era  então um olhar noutro olhar
enleado, duas garças respirando
o vidro frio do ar. (A sede de cada
uma difícil de saciar). Depois uma
reviveu, ou  seja, voltou a ser,  a
outra se foi embora, ferida de pouca
fé. Uma delas chorou seco, a outra
não sei dizer

16/01/2014

ser-se

Um velho voltou hoje ao mar profundo,
o corpo torto mas a fronte de osso
agudo. Era o que era,  pouco o que
pedia: um peixe de sal, uma côdea de
pão, uma enxerga, uma telha, ver a lua
na noite, ver o dia nascer e dar a mão
ao mar e dar a mão ao mar até morrer

boa morte

A chama esvai-se em brasa na lareira
a luz fraqueja e deixa de luzir
descai a cara no encosto da cadeira
podíamos morrer mas basta-nos dormir

cardo em flor

Num ponto do espaço
centrado no nada, a
milhões de anos luz de
coisa nenhuma, pleno
de si e de silêncio
brilha um belo
cardo em flor

09/12/2011

alma ao espelho

Firmava o corpo, em atenção. Percorria
o pormenor de cada ruga da fronte, de
cada linha do rosto, de cada curva
do sorriso

Era bela a sua face, mas não
buscava já essa beleza. No fundo
do olhar mirava o espelho de
uma alma em que cria
reflectir-se

27/09/2011

terra nossa

Terra de pó seco
de caminhos estéreis
e braços dolentes
Terra de pedras ásperas
inimigas do pisar
Terra de sofrimento
envergonhado, de
angústias escondidas
aos olhos dos filhos
Terra de facas e
cardos,essa
que lhe doía

21/09/2011

regresso

Um meio fado nos lábios
e outro meio em conjura
Ser e não ser daqui, mas
não poder ser doutro lado
Reconhecer num rosto do
passado os traços jovens
do velho que regressa

06/05/2010

primavera

Chegaram as andorinhas
negras mais negras do que
negras eram antes

à sombra

Côdea de pão em azeite
na calidez de uma sombra
suada no Alentejo

gaivotas

Seus olhos viram o mar
como o mar era de dia
seus olhos eram gaivotas

24/03/2010

não era bem

Não era bem a seda do falar, como
não era bem o seu poisar de olhos
circunstantes. Seria, porventura
mais o gesto, o voo dos dedos, a
forma como guardava o espaço
na cova leve das mãos. Doutra
maneira, como retinha a luz em
seu redor, ou seja ainda, o seu
modo tão seu de existir. Num
lugar morno imune ao tempo havia
risos, festas e puríssimas
palavras

22/02/2010

da luz dos vaga-lumes

Contar por versos o que eram
quase Verão, as noites de
Azedia. A Casa perto e
longe, a ribeira discreta
no fundo dos caniços. Era
altura da luz dos vaga-lumes
espelhada no encanto dos
olhos das crianças. Os cavalos
há muito que sabiam das
silentes sinfonias luminosas, mas
um poldro galopava um frenesi
à flor da erva e sorrisos
clareados de inocência acenavam
às estrelas um sinal de
entendimento

por ser tão dia

Por ser manhã, talvez
talvez por já ser dia
abria o coração à breve
luz de Abril. No regaço
de si mesmo prometia
um olhar claro ao que
era no porvir. Talvez
por ser manhã, talvez
por ser tão dia

30/12/2009

pequena luz

Naturalmente nú
acendeu na casa uma fogueira
De pele chegada ao lume
arrependeu-se de cada
pecado, de cada
mal feito, de cada
bem desperdiçado. Não
era ainda altura do
perdão,saíu, assim, para
o inverno,o passo
incerto, uma pequena
luz nos nós dos dedos

15/05/2009

o pó dos astros

De terra e de não terra são os ossos
de carne e de não carne o pensamento
o mesmo rosto às vezes, às vezes outra
cara, fortes e fracos, presos e libertos:
Assim somos, de tudo e nada feitos
e feitos, mesmo assim, do pó dos astros

03/03/2009

paragem ao luar

Vem o poema no compasso do galope
deslizando nos ares altos do cavalo
de cristal. Corpos elásticos andam
por direito em comunhão de esforço
até ao zénite em que cessa o
movimento. Tu respiras, o cavalo
resfolega e há um momento de
paz pura no silêncio da paragem
ao luar

entre os olhos e a nuca

Era de noite quando anoiteciam
as mãos esquecidas sobre o surdo
som do ventre. Entre os olhos e a
nuca resistiam ao cansaço e
diziam poesia como se
esconjurassem espíritos